Ah, sim, [odeio] com todas as minhas forças. Eu odeio a classe média até o fim dos meus dias.
Por que é que eu odeio a classe média? A sociedade capitalista tem duas classes fundamentais: a classe trabalhadora, que produz a mais-valia, e a burguesia. O trabalho da burguesia é explorar o trabalhador, porque uma parte do trabalho dele não é paga e vira capital.
O lugar, o papel, o significado, a relação dessas duas classes são claríssimos. Entre elas, tem uma terceira, que não tem lugar econômico porque não está nem na classe trabalhadora nem na classe burguesa. E a função da classe média é ideológica: espalhar as ideias da burguesia, da classe dominante.
Como a classe média não sabe muito bem onde está, ela fica insegura. Ela tem um sonho e um pesadelo. O sonho é se tornar burguesa. Pensa que se tiver um apartamento com dez suítes, churrasqueira na varanda, não sei o que mais, está já próxima disso. Mas ela não está.
Enquanto não receber a mais-valia, ela não entra na burguesia. Ela pode ficar rica, mas burguesa ela não é. E por isso ela tem um pesadelo, que é cair na classe dominada, na classe trabalhadora.
Então, a classe média funciona oprimindo os dominados e festejando e bajulando os dominantes. Por isso ela é odiosa. Ela é o cimento ideológico que garante que essa sociedade fique como está. É isso que acho odioso nela: não perceber que essa sociedade como está não pode ser.
Sobre a tecnologia
Uso o celular como telefone e para fazer Pix. Só. Essa coisa chamada WhatsApp, eu nem sei o que é. E nenhuma rede social. Nada, nada. Quando faço essas conferências online, eu peço para as pessoas: “Mande o tal do link 20 minutos antes e tenha uma santa paciência lá do seu lado que eu vou acertar”.
E aí, você não imagina, tomo um calmante, porque sei que vou errar no link. Mas não erro. Eu sempre acerto.
O mesmo acontece com relação ao computador. Eu sempre acho que vou apertar um botão errado e vou perder tudo. Meu filho disse: “Não, mãe, você não perde porque está na nuvem”. Eu falei: “Bom, então agora estou destruída, porque, se chover, acaba tudo, né?”. [risos]
Ao mesmo tempo, tenho problemas filosóficos com o mundo digital e especialmente com esse objeto [faz gesto com a palma da mão como se fosse a tela de um celular]. Eu venho de uma formação pela fenomenologia e, em particular, pelo [filósofo francês Maurice] Merleau-Ponty, que é o universo da percepção. E portanto é o mundo da relação com o espaço vivido, com o tempo vivido, com os símbolos e com a linguagem.
A redução que o digital fez foi tornar o espaço isso aqui [o celular], o tempo isso aqui [o celular]. O mundo da percepção está destruído.
Sobre Boaventura de Sousa Santos e assédio sexual
Em 1972, fui dar aula em Stanford, nos EUA, e, num dado instante, eu estava saindo da sala da diretoria com duas professoras. Aí um professor abriu a porta para nós. A professora fez um escândalo. Disse que aquilo era assédio sexual, que ele estava propondo o coito…
Eu caí das minhas tamancas. Então, eu me pergunto: o que é que se determinou como comportamento inapropriado? Para aquele grupo de Stanford, um homem abrir a porta para uma mulher era assédio sexual. Então, acho que as fronteiras da vida cotidiana e dos hábitos milenares precisam ser discutidos. Não há uma discussão a esse respeito. O que há é uma acusação.
E a minha dificuldade em lidar com as acusações é esta: você não tem um esclarecimento do proibido e do permitido, do aceitável e do inaceitável. A punição vem antes que você saiba qual é o crime. Então isso me deixa muito aflita.
Tive uma relação sempre de amizade profunda com Boaventura em muitas ocasiões e jamais poderia ter qualquer dúvida a respeito do comportamento dele comigo. Eu vi dois amigos meus serem destruídos e um colega meu de Córdoba, na Argentina, quase se matar porque alunas fizeram acusações contra eles.
Eu sempre acho que é preciso proteger os movimentos, mas é preciso ter cautela no momento da acusação. Você pode destruir uma pessoa que talvez tenha tido um gesto que não podia ter tido. Mas a acusação é de um grau de violência que eu ainda não concordo. É o tal do cancelamento. Eu acho que é um assassinato.