POLÍTICA

Esparadrapos na boca, megafone nas redes: a encenação que ameaça a democracia

Deputados bolsonaristas com esparadrapo em protesto no Congresso. Foto: reprodução

Quem viu ontem parlamentares da extrema-direita com esparadrapos na boca no Congresso talvez tenha sentido um breve alívio: “Ufa! Ao menos, por um instante, calados”. Mas o gesto, embora farsesco, não é inofensivo. Ali estavam alguns dos mais prolíficos disseminadores de mentiras, teorias conspiratórias, difamações e discursos de ódio, sempre amparados pela imunidade parlamentar e pela retórica da liberdade de expressão. Há anos, suas falas circulam livremente por redes sociais, rádios, canais religiosos e tribunas. Nenhum foi silenciado; pior ainda, poucos foram responsabilizados — o que, em democracias maduras, representa o mínimo esperado.

É curioso, e preocupante, observar como essa encenação reproduz fielmente o repertório da extrema-direita internacional. Trata-se do mesmo manual que Trump já folheou nos Estados Unidos e que, antes dele, os nazistas utilizaram com grande efeito retórico na Alemanha de Weimar, especialmente entre 1923 e 1929, quando o movimento ainda tateava os bastidores do poder. A tática é tão simples quanto eficaz: gritar “censura” enquanto se abusa da liberdade; clamar por “liberdade de expressão” ao mesmo tempo em que se destrói a possibilidade de o outro falar.

O uso espúrio da linguagem — isto é, a manipulação do direito à fala como instrumento de erosão democrática — está longe de ser novidade. A República de Weimar já previa dispositivos legais contra discursos antidemocráticos. E, de fato, os aplicou em larga escala: Hitler foi impedido de discursar em diversos estados; jornais nazistas foram fechados; líderes como Joseph Goebbels foram presos por incitação ao ódio. Ainda assim, como sabemos, a história não terminou bem.

Durante muito tempo, atribuiu-se à República de Weimar o erro da leniência, isto é, uma suposta tolerância excessiva com discursos extremistas. Essa leitura é criticada no que se convencionou chamar Falácia de Weimar, expressão usada para designar a interpretação segundo a qual a democracia fracassa por permitir liberdade demais a seus inimigos. Autores como Greg Lukianoff e Nadine Strossen demonstram, no entanto, que a repressão ao discurso nazista foi real e severa, mas ainda assim ineficaz. As leis existiam, foram aplicadas, mas não impediram a ascensão do fascismo. O movimento soube transformar cada punição em espetáculo, cada limite legal em combustível político, cada sanção em narrativa de martírio. Nesse contexto, a repressão institucional funcionou menos como barreira e mais como vitrine para o vitimismo autoritário.

Pôster do cartunista nazista Philipp Rupprecht, da Alemanha dos anos 1920, mostrando Hitler amordaçado. Reprodução

Com base na experiência traumática da Alemanha nazista, o jurista Karl Loewenstein formulou, nos anos 1930, o conceito de democracia defensiva, ou seja, a ideia de que regimes democráticos não podem se manter neutros diante de atores que utilizam as garantias do sistema para corroê-lo por dentro. Essa formulação se inspira também no paradoxo da tolerância, proposto pelo filósofo Karl Popper, segundo o qual uma sociedade aberta não pode tolerar indefinidamente os intolerantes sem correr o risco de ser destruída por eles. A democracia defensiva, portanto, propõe o uso de medidas institucionais legítimas com o objetivo de conter avanços autoritários travestidos de legalidade.

Um dos pilares centrais dessa doutrina é justamente o entendimento de que a liberdade de expressão é um direito fundamental, mas não absoluto. O exercício do discurso público deve, sim, ser protegido, porém não quando se transforma em arma contra o próprio regime democrático. O que se observa no Brasil, assim como em outros contextos, é a manipulação estratégica dessa liberdade por forças que têm como projeto a sua destruição. O uso sistemático da mentira, da desinformação, do discurso de ódio e da retórica conspiratória constrói um ecossistema no qual o debate racional perde espaço e a violência simbólica se naturaliza. Nesse ambiente, a palavra deixa de construir para passar a minar.

Há, evidentemente, um argumento recorrente: o de que limitar a fala de extremistas equivale a transformá-los em mártires, reforçando suas narrativas persecutórias. No entanto, essa objeção parte de uma falsa premissa, a de que qualquer regulação do discurso configura censura — o que não corresponde à realidade. Democracias maduras aprenderam a distinguir com precisão a repressão à incitação ao ódio da tentativa de silenciar divergências legítimas. O desafio, portanto, está em reconhecer o momento em que a liberdade de expressão deixa de ser instrumento do pluralismo democrático e passa a operar como vetor de corrosão institucional. A questão não é punir ideias, mas conter projetos de destruição que se disfarçam de opinião.

No Brasil, discursos de extrema-direita dominam redes sociais e aplicativos de mensagens, circulando com velocidade estonteante em canais digitais turbinados por algoritmos que premiam o escândalo e o sensacionalismo. Nesse cenário, emerge um problema de enorme gravidade: o desequilíbrio no acesso aos meios de resposta é tanto real quanto profundo. Conteúdos moderados, de checagem ou ponderação simplesmente não alcançam a mesma projeção. A arquitetura digital contemporânea privilegia o grito, não o argumento. O ambiente de debate, assimétrico por natureza, potencializa a eficácia dos que se dizem censurados justamente enquanto gritam para o mundo por meio de um megafone global.

Não estamos diante da mera presença de ideias conservadoras ou mesmo radicais no espaço público. Trata-se, antes, de uma máquina retórica profissionalizada, financiada e distribuída em escala massiva, cuja função não se limita à disputa de narrativas, mas se estende a objetivos mais profundos e perigosos: sabotar a credibilidade das instituições democráticas, corroer a confiança no processo eleitoral, fomentar o caos informacional e, em última instância, normalizar a ruptura institucional.

A resposta, portanto, não pode ser ingênua, tampouco autoritária. Ela precisa ser democrática e firme, sustentada por regras claras, critérios de proporcionalidade jurídica e mecanismos de supervisão independente. Isso envolve o fortalecimento das instituições de checagem e fiscalização, a regulação da desinformação nas plataformas digitais e o reequilíbrio do acesso aos meios de comunicação.

Porque, no fundo, o que está em jogo não é apenas o direito de falar, mas o futuro do próprio espaço onde o discurso público ainda pode existir. Democracias não morrem quando silenciam os intolerantes, mas sim quando hesitam diante deles. Proteger a liberdade de expressão exige coragem — a coragem de defendê-la contra seus inimigos, inclusive quando falam alto, posam de vítimas e usam a liberdade como disfarce para o autoritarismo. O objetivo não é calar vozes: é impedir que, ao final de tudo, reste apenas o silêncio.

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