POLÍTICA

Relator da ONU critica Brasil por devolver doméstica escravizada ao patrão. Por Leonardo Sakamoto

A trabalhadora Sônia Maria de Jesus e o desembargador Jorge Luiz Borba – Reprodução

Por Leonardo Sakamoto, no UOL

O relator especial da ONU para formas contemporâneas de escravidão Tomoya Obokata afirmou estar “alarmado” com o fato de o Poder Judiciário brasileiro ter autorizado o retorno da trabalhadora doméstica Sônia Maria de Jesus de volta à casa do empregador, um desembargador de Santa Catarina, “apesar de informações confiáveis que denunciam exploração e abuso”. Ela havia sido resgatada de condições análogas às de escrava.

Obokata visitou o Brasil em missão realizada entre os dias 18 e 29 de agosto para avaliar como o país vem atuando no combate à escravidão contemporânea e destacou negativamente o caso de Sônia. Ele se reuniu com a família da trabalhadora em São Paulo.

Entre as recomendações feitas ao Estado brasileiro, está o de “salvaguardar os direitos das vítimas de servidão doméstica, incluindo a Sra. Sônia Maria de Jesus, garantindo a não-revitimização e o acesso a reparações”.

Ela foi resgatada por uma equipe de fiscalização na casa do magistrado, em junho de 2023, em Florianópolis, e levada de volta por ele de um abrigo para a sua residência com anuência do Superior Tribuna de Justiça e do Supremo Tribunal Federal três meses depois.

O grupo especial de fiscalização móvel composto por Inspeção do Trabalho, MPT (Ministério Público do Trabalho), MPF (Ministério Público Federal), DPU (Defensoria Pública da União) e Polícia Federal foi o responsável por retirar a trabalhadora.

O desembargador Jorge Luiz de Borba e sua esposa, Ana Cristina Gayotto, foram denunciados pela Procuradoria-Geral da República pelo crime de submissão de alguém à condição análoga à de escravo previsto no artigo 149 do Código Penal.

trabalhadora doméstica Sônia Maria de Jesus assinando papéis
A trabalhadora Sônia Maria de Jesus – Reprodução

Durante o resgate, a fiscalização constatou que Sônia, aos 50 anos na época, trabalhava para a família desde os nove, quando foi levada de uma creche na Grande São Paulo pela mãe de Ana Cristina, Maria Leonor Gayotto. Ela trabalhava na residência dos Borba cuidando de Maria Leonor e exercendo tarefas domésticas.

Além de não ter carteira de trabalho, salário, descanso semanal remunerado, férias, 13º e outros direitos, ela também tinha passado a maior parte da vida sem documento de identidade, o qual obteve apenas em 2019.

Cega de um olho e surda, Sônia também não havia sido alfabetizada na língua brasileira de sinais, nem em português, comunicando-se por gestos — ela começou a aprender Libras no abrigo para onde foi após resgatada. Segundo a fiscalização, ela fazia refeições com as demais empregadas e dormia ora em um quarto anexo à área de serviço da residência (onde ficavam seus pertences), ora em um quarto de hóspedes dentro da casa.

“Muitas trabalhadoras domésticas no Brasil vivenciam formas contemporâneas de escravidão, uma profissão ocupada predominantemente por mulheres e meninas”, afirmou Tomoya Obokata em seu relatório, usando o caso de Sônia como exemplo. “Nos casos mais graves, indivíduos foram forçados a trabalhar desde a infância e passaram a maior parte de suas vidas confinadas em domicílios particulares em condições de servidão doméstica”, conclui.

O relator, que irá levar suas considerações para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, afirmou que está “profundamente preocupado” com os relatos de formas contemporâneas de escravidão compartilhados com ele. “Particularmente por povos indígenas, pessoas afrodescendentes, incluindo membros da comunidade quilombola, mulheres que trabalham no setor doméstico, bem como pessoas migrantes e refugiados”, disse.

Desembargador disse que doméstica era filha afetiva

Jorge Luiz de Borba afirmou que ela é sua filha afetiva, prometendo adotá-la. Contudo, uma postagem no Instagram de sua esposa mostra Sônia relacionada em uma lista de “funcionárias” do casal. Ela também não aparece entre as pessoas que Ana Gayotto postou, em um 23 de setembro, para celebrar o Dia dos Filhos. Também não aparece em outra imagem, de 2019, em que comemora a “família toda reunida”.

Questionada pelo UOL, na época da publicação do resgate sobre as postagens no Instagram, a família Borba afirmou, através de sua assessoria, que “em respeito às decisões da Justiça, não haverá manifestação enquanto perdurar o sigilo”.

Diante da repercussão do caso, o desembargador, sua esposa e os quatro filhos do casal assinaram uma nota à imprensa anunciando que iriam ingressar na Justiça com pedido de filiação afetiva, garantindo direitos de herança. Também afirmaram que jamais tolerariam trabalho escravo, “ainda mais contra quem sempre trataram como membro da família”, e que estão colaborando com as autoridades.

O coordenador da operação, Humberto Camasmie, foi afastado do caso sob a alegação de que violou o segredo de Justiça ao conceder uma entrevista a um programa de TV. Mas o caso já era público quando ele deu tratou do tema.

Com aval do ministro Mauro Campbell, do STJ, o desembargador e sua esposa a visitaram Sônia no abrigo e a levarem de volta para a residência deles sob a justificativa de que ela demonstrou “vontade clara e inequívoca”, em 6 de setembro de 2023. O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, negou um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União contra a decisão do STJ.

O subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, que cuida do caso no Ministério Público Federal, concordou com pedido da Defensoria Pública da União (DPU) para que o STF considere ilegal a decisão judicial que permitiu o retorno da trabalhadora. Em seu parecer, afirmou que há laudos técnicos que atestam a vulnerabilidade da mulher e a impossibilidade de sua manifestação de vontade de forma livre e inequívoca.

“As circunstâncias são tão complexas que não soa exagero se comparar a situação àquela pela qual passam as vítimas da ‘Síndrome de Estocolmo’, estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor”, escreveu.

Carlos Frederico chama a ordem que permitiu a retomada do convívio entre investigados e vítima de “teratológica”. E diz que “o retorno da vítima à casa dos denunciados compromete não apenas seu processo de aprendizado em Libras, como interrompe a construção de sua autonomia e de desvinculação afetiva (dependência) em relação aos seus antigos patrões”.

Organizações e sindicatos pediram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), em outubro de 2023, que o Brasil seja questionado sobre o caso. Ana Cristina Gayotto de Borba foi incluída, em abril deste ano, na “lista suja” do trabalho escravo do governo federal.

Trabalho escravo no Brasil hoje

“Devido à falta de outras opções, muitos trabalhadores, incluindo crianças, estão sujeitos a um ciclo vicioso de pobreza intergeracional. Se abusos de direitos humanos forem denunciados, os trabalhadores e defensores de direitos humanos são ameaçados por empregadores e outros atores que os silenciam, reforçando a impunidade e tornando o acesso à justiça e a reparação quase impossível”, afirmou o relator especial da ONU ao final de sua missão no Brasil.

Para ler o seu relatório de final de missão, uma síntese do que ele apresentará às Nações Unidas, clique aqui.

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 65 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.

No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Denúncias podem ser feitas de forma anônima pela Plataforma Ipê ou pelo Disque 100.

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