
Figura influente do bolsonarismo e discípulo declarado de Olavo de Carvalho, o padre Paulo Ricardo virou alvo de seguidores ao compartilhar, no dia 31 de julho, um artigo que critica o capitalismo, sistema amplamente defendido pela extrema-direita brasileira. A publicação, traduzida de um texto do espanhol Juan Manuel de Prada, afirma que o capitalismo promove uma “devastação antropológica”, destruindo a dignidade humana e corroendo estruturas sociais tradicionais.
A reação foi imediata. Inconformados, bolsonaristas passaram a atacar o padre nas redes sociais, acusando-o de trair os valores do movimento e até de flertar com a Teologia da Libertação, que ele próprio já combateu.
Um dos comentários mais absurdos sugeriu que o padre “estudasse a Escola Austríaca de economia”, como se isso pudesse corrigir a doutrina social da Igreja, que há mais de um século denuncia os abusos do sistema capitalista.
O episódio evidencia a contradição do catolicismo de extrema-direita brasileiro, que nunca se preocupou em entender o próprio conteúdo da fé que diz defender. Para esse grupo, o cristianismo só serve quando pode ser usado como arma cultural contra pobres, mulheres, artistas e adversários políticos. Quando confronta os pilares do liberalismo econômico, vira “heresias socialistas”.

Paulo Ricardo não é qualquer padre. Com 5,8 milhões de seguidores nas redes, atua como guru religioso da base mais radical do bolsonarismo. Foi citado no relatório final da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe em 2022, ao lado do padre José Eduardo, como um dos articuladores religiosos do movimento que tentou impedir a posse de Lula. Em 25 de dezembro daquele ano, os dois conversaram sobre a permanência de Bolsonaro no poder, como revelou a PF.
A trajetória do padre bolsonarista revela que seu problema nunca foi doutrinário, mas de caráter. Quando os princípios da Igreja coincidem com os delírios autoritários da extrema-direita, ele os abraça. Quando não, são descartados — ou, como agora, motivo de fúria entre os fiéis cegos por um projeto político.
Leia o texto que gerou as críticas:
As três vias da devastação capitalista
Em alguma ocasião anterior, mencionamos uma crítica feroz de Chesterton, na qual ele explica de forma sucinta e perspicaz que o capitalismo não é apenas uma forma de organização econômica, mas também (e sobretudo) um projeto de devastação antropológica.
Na crítica chestertoniana, são mencionadas as três vias que o capitalismo utiliza em seu trabalho corrosivo de destruição dos laços humanos.
Uma dessas vias, que consiste em “tirar os homens de suas casas para que busquem trabalho”, provocou, na época de Chesterton, o êxodo do campo para a cidade, e até mesmo a emigração para outros países mais promissores, como aconteceu com a emigração em massa de europeus para o Novo Mundo.
Agora que o capitalismo se tornou plenamente global, essa vasta empresa adquire contornos ainda mais monstruosos por meio de fluxos migratórios que devastam continentes inteiros, desestabilizando culturas milenares e tornando insuportável a convivência social. Para alcançar toda essa devastação, o capitalismo cria sociedades imersas no usufruto da sua riqueza, as quais renunciam a ter filhos ou impedem que eles nasçam por meio de métodos criminosos; em seguida, o capitalismo — que, como aponta o malandro Hayek, faz o seu “cálculo de vidas” — repõe as gerações que não nasceram por exércitos de substitutos vindos dos confins do mundo, aos quais pode satisfazer com salários irrisórios, diminuindo os custos de produção.
O capitalismo leva a cabo a segunda via de destruição dos laços humanos, suscitando “uma luta moral e uma competição comercial entre os sexos”, de tal forma que a convivência entre eles se torne insuportável e árida. Para triunfar, o capitalismo precisa impor o antinatalismo (quanto menos filhos se tem, mais as pessoas se contentam com salários mais baixos e lutam com menos ardor por uma existência digna); e não há melhor maneira de impor o antinatalismo do que as ideologias que prometem o que agora chamam de “empoderamento” e, antigamente, “realização” da mulher, quando na verdade têm como objetivo realizar os planos capitalistas, que consistem em pagar salários baixos insuficientes para sustentar uma prole; e, em última instância, incitar um individualismo que percebe a família como um órgão execrável e claustrofóbico, do qual convém fugir.
Para isso, o capitalismo estimula, com sua propaganda, comportamentos egoístas (sempre disfarçados de conquista de uma independência libertadora superior), e, ao mesmo tempo, as paixões mais torpes (sempre apresentadas como expressões emancipatórias do desejo), facilitando-as por meio da concessão do divórcio, do aborto e de um formigueiro vertiginoso de direitos sexuais que nem mesmo Chesterton, na sua surpreendente clarividência, conseguiu vislumbrar. E assim impõe uma nova forma de religião que, ao mesmo tempo que exalta a luxúria, proíbe a fecundidade.
A terceira via pela qual o capitalismo completa a sua devastação antropológica consiste em destruir “a influência dos pais” ou, se preferirem, em semear a discórdia entre as gerações. Desta forma, tornam-se mais difíceis os empreendimentos comuns, pois — como salienta o próprio Chesterton — “se a humanidade não tivesse se organizado em famílias, não teria sido capaz de se organizar em nações”. Portanto, para devastar a resistência das nações, nada melhor que desorganizar os fragmentos familiares que ainda subsistem, fomentando a falta de comunicação entre as gerações.
Para desenvolver essa tarefa traiçoeira, o capitalismo serviu-se da chamada “cultura pop”, que molda sucessivas gerações enclausuradas nas suas respectivas bolhas de referências pseudoculturais, como se fossem espelhos narcisistas que expulsam as gerações imediatamente anteriores e posteriores, formando uma sociedade perfeitamente estratificada, onde cada estrato — cada geração — está impermeabilizado à tradição, absorto em suas bugigangas efêmeras e perecíveis (que, ao mesmo tempo em que garantem seu isolamento, estimulam seu desejo de consumo). Matando a transmissão cultural natural entre gerações, alcança-se uma autêntica antissociedade, na qual cada geração vive agarrada aos destroços do seu naufrágio (suas musiquinhas festivas, suas séries infames da Netflix, suas porcarias sistêmicas), inconsciente da sua condição de náufraga, porque pensa que o naufrágio induzido pelo capitalismo é um triunfo da sua individualidade.
Nem é preciso dizer que essas três vias de devastação antropológica atuam simultaneamente, até completar sua missão comum.