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Jovens cubanos destacam legado fraternal e humanista de Che Guevara

O silêncio da multidão se tornou sufocante. De algum jeito, todos ali já sabiam. Mesmo assim, agarrados à teimosa esperança de que —mais uma vez— tudo fosse mentira, esperavam ouvir que aquelas fotos infames, as reportagens indecentes e as festas sombrias do imperialismo não passavam de uma grande farsa.

Naquele 18 de outubro de 1967, diante da imensidão do povo reunido na Praça da Revolução, Fidel confirmava, com visível tristeza, que “o mais extraordinário dos nossos companheiros de revolução”, Ernesto Che Guevara, havia sido assassinado na selva boliviana. Nenhuma palavra podia descrever a dor que tomou conta daquela praça.

Nove dias tinham se passado desde o fatídico 9 de outubro, quando Félix Ismael Rodríguez —o experiente agente da CIA que havia comandado a fracassada invasão mercenária da Baía dos Porcos— transmitiu a ordem de executar o Che, ferido e preso na escolinha de La Higuera. A decisão política de matá-lo foi tomada pelo então presidente boliviano, René Barrientos. Rodríguez mandou que atirassem abaixo do pescoço, para simular um confronto e apresentar à imprensa uma morte em combate.

A história é conhecida. O encarregado de cumprir a ordem foi o sargento boliviano Mario Terán, que, anos depois, contaria que o Che, mesmo gravemente ferido, lhe pareceu um gigante. Não pediu clemência nem demonstrou medo. Terán lembraria que, naquele instante, paralisado pelo pavor, o Che lhe disse com firmeza: “Fique calmo, soldado, você está prestes a matar um homem”.

Depois do assassinato, o exército boliviano e os agentes da CIA levaram o corpo para Vallegrande, um pequeno vilarejo escondido entre os vales bolivianos. Lá, na lavanderia do Hospital Nosso Senhor de Malta, o corpo de Guevara foi cruelmente exibido à imprensa como troféu do suposto “triunfo” militar. Durante a coletiva, os militares apontaram os ferimentos de bala, tentando sustentar a farsa de uma morte em combate.

Horas depois, na madrugada de 11 de outubro, os corpos do Che e de seus companheiros foram enterrados às escondidas. Os serviços de inteligência dos Estados Unidos, em colaboração com o exército boliviano, informaram que os corpos estavam “desaparecidos”. Foi uma tentativa desesperada de impedir que suas sepulturas se tornassem santuários de peregrinação revolucionária.

Mesmo assim, nas décadas seguintes —e até hoje— milhares de pessoas, ano após ano, vão até aquele vilarejo remoto, improvisando altares e oferendas em homenagem ao “Santo de La Higuera” (Santo da Figueira).

Durante aqueles nove dias, o governo revolucionário tentou de todas as formas confirmar os fatos antes de fazer qualquer anúncio. Não era a primeira vez que o governo dos Estados Unidos se gabava de ter matado “aquele perigoso guerrilheiro”.

Naquela noite de 18 de outubro, diante da dor do povo reunido na Praça da Revolução, Fidel —depois de destacar as qualidades do Che como revolucionário e de afirmar que “tinha uma fé infinita nos valores morais, uma fé infinita na consciência dos homens”— declarou que a Revolução queria que seus combatentes, trabalhadores e estudantes fossem como o Che.

Foi então que, diante da dor de uma perda imensa, a multidão começou a gritar: “Seremos como o Che!”.

Em um novo aniversário do Guerrilheiro Heróico, o Brasil de Fato conversou com três jovens cubanos sobre o significado do Che nos dias de hoje. Um Che distante das estátuas e dos rituais burocráticos, que se transforma em uma utopia viva para as lutas do presente.

Amar aqueles que ninguém ama

Alejandra Romero descreve sua relação com a figura do Che como “visceral”. Quando criança, seu pai lia para ela trechos do Diário na Bolívia, o que despertou uma profunda admiração por sua figura. Hoje, ela estuda História, convicta de que “ainda há muito a dizer e descobrir sobre o Che”.

Entre as imagens que mais a marcaram da vida e da obra do revolucionário, Alejandra menciona sua passagem pela colônia de hansenianos de San Pablo, na Amazônia peruana, muito antes de Ernesto Guevara se tornar o Che.

Durante sua primeira viagem pela América do Sul, ao lado do amigo Alberto Granado, em junho de 1952, eles chegaram à colônia de San Pablo. A visita foi possível graças a uma carta de apresentação dirigida ao doutor Hugo Pesce, renomado médico socialista peruano, discípulo de José Carlos Mariátegui e especialista em hanseníase.

O local abrigava cerca de seiscentos pacientes, que viviam em uma vila separada e isolada dos médicos e freiras responsáveis. Ao chegarem, os dois jovens se recusaram a ficar separados dos doentes e decidiram dormir nos alojamentos dos pacientes. Lá passaram vários dias trabalhando e convivendo com eles. Desafiando todas as convenções sociais, não apenas os atendiam, mas também compartilhavam das atividades cotidianas — chegaram até a jogar futebol com os hansenianos.

Alejandra lembra que foi ali que Ernesto completou vinte e quatro anos, em 14 de junho. “Para comemorar, os pacientes, que haviam desenvolvido grande carinho e respeito pelos dois viajantes argentinos que os tratavam como iguais, organizaram uma festa”, conta.

Durante a celebração, em um momento de grande emoção, Ernesto fez um brinde que ficou gravado na memória de todos. Embora as palavras exatas variem entre as fontes, a mensagem central permanece intacta.

Depois de agradecer o que chamou de uma “magnífica demonstração de afeto”, Ernesto declarou: “Acreditamos — e depois desta viagem mais firmemente do que antes — que a divisão da América em nacionalidades incertas e ilusórias é completamente fictícia. Somos uma só raça mestiça, que, do México ao estreito de Magalhães, apresenta notáveis semelhanças etnográficas. Por isso, procurando me livrar de qualquer traço de provincianismo estreito, ergo um brinde ao Peru e à América unida.”

Para Alejandra, aquele momento representa “o instante em que se forja uma consciência capaz de nos mostrar não o guerrilheiro icônico, mas o jovem humanista em plena transformação”. Ela afirma que foi uma “epifania” nascida do convívio igualitário com os mais marginalizados e excluídos.

“Em um mundo de nacionalismos excludentes e fronteiras erguidas, isso nos lembra que a verdadeira política nasce da empatia, e que nossa identidade mais essencial é a de uma pátria compartilhada”, reflete. Ela ressalta que as lutas do Che nasceram do contato direto com o povo, o que mantém vivo “um poderoso chamado à unidade latino-americana — não como projeto burocrático, mas como um laço fraternal indestrutível”.

Primeiro, o povo

Renier Garí Angulo cresceu ouvindo uma anedota sobre o herói revolucionário, que foi passada de geração em geração em seu pequeno povoado, na província de Ciego de Ávila.

Aconteceu no começo da década de 1960, quando Che, então ministro das Indústrias, visitou uma fábrica de charutos chamada La Casita Criolla. Toda a cidade ficou comovida.

Depois de percorrer o local, o diretor da empresa se aproximou do Che e lhe ofereceu, como presente, uma caixa de charutos de alta qualidade produzidos ali. Renier conta que o Che o olhou com severidade.

“O senhor é dono dessa caixa de charutos?” perguntou. “Não, ela pertence ao povo trabalhador”, respondeu o diretor, um tanto desconcertado.

A réplica foi imediata. Olhando para os operários reunidos, o Che ergueu a voz para que todos ouvissem, “E o senhor pediu permissão aos trabalhadores para me dar esse presente? Consultou com eles antes de fazê-lo?” Sem rodeios, ordenou que a caixa fosse guardada.

“É claro que eu não estava lá; tenho apenas 23 anos. Pode ser que a história, com o passar do tempo, tenha se transformado em um mito. Mas sempre imaginei a expressão do diretor naquele momento. Como um simples gesto podia revelar uma atitude burocrática que, para o Che, era totalmente inaceitável”, diz Renier, que hoje é professor do ensino médio.

A partir de sua experiência como educador, ele afirma ver cotidianamente como aqueles valores que o Che transmitia estão ameaçados.

Renier acredita que o exemplo do Che tem um valor ético e político que precisa ser cultivado todos os dias. “Muitas vezes naturalizamos os privilégios dos dirigentes, ou o fato de que eles —sejam de qual área forem— tomem decisões sem consultar as bases. O Che, com gestos como esse, mostrava que essas ‘cortesias’, por menores que pareçam, não são dignas de um processo horizontal e revolucionário. São um peso morto que precisamos combater dia após dia.”

Uma figura humana

Giselle Armas Pedraza lembra que a primeira vez que entendeu o que o Che significava foi no segundo ano do primário. Sua escola ficava perto do aeroporto de San Antonio de los Baños, e, em 12 de julho de 1997, seus professores levaram os alunos para testemunhar a cerimônia de recebimento dos restos do guerrilheiro, liderada por Fidel Castro e pela família do Che.

Ela conta que, apesar de ser uma criança muito pequena que não entendia completamente tudo o que estava acontecendo, aquele dia a marcou profundamente. As pessoas reunidas, a cerimônia, o caixão com seus restos mortais e a bandeira de Cuba formaram uma imagem que a comoveu profundamente.

Atualmente, Giselle é coordenadora da Cátedra Ernesto Che Guevara da Universidade de Havana. Ela afirma que um dos principais esforços pedagógicos que realiza é o de “humanizar”.

“Muitas vezes, quando falamos de heróis e heroínas, acabamos os idealizando. Colocamos eles num lugar inatingível”, reflete. Ela acrescenta que, em seu trabalho docente, tem sido muito importante aproximar essa figura para que os estudantes possam ver que ele também foi uma criança e um adolescente como eles, que teve muitos obstáculos para superar antes de se tornar a pessoa de quem todos falam.

Para Giselle, essa aposta em humanizar o Che é o que permite romper com as frases feitas e os estereótipos que cercam sua figura. Assim, os estudantes podem se aprofundar em sua obra a partir de uma análise crítica e identificar quais ideias ou ferramentas lhes permitem analisar a realidade contemporânea.

Giselle destaca que a figura do “homem e da mulher novos” não é um ideal estático, mas “um sujeito coletivo que estamos construindo constantemente com nossas ações”. Nessa ideia reside, segundo ela, um princípio fundamental: “identificar que o processo revolucionário também depende do que fazemos”.

Ela sublinha a importância do “fazer” e do “criar” nas novas gerações, como caminho para que “as pessoas — principalmente os mais jovens — possam ser sujeitos da revolução”.

Nesse sentido, assegura que “o Che não é letra morta”, nem se reduz à história de seu passado heroico. Pelo contrário, ressalta que se trata de uma figura que deve ser lida “aqui e agora”.

“Às vezes — explica — o Che é muito crítico com a nossa realidade, muito incômodo. Ele nos alerta sobre os caminhos perigosos que podemos tomar, ao mesmo tempo em que nos convida a continuar criando e apostando em um socialismo cubano onde o sujeito popular seja o criador de uma nova sociedade.”

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