
No Brasil, os cartórios são vistos como uma obrigação burocrática da vida adulta, associados a filas, papeladas e taxas. Enquanto em muitos países os registros civis são feitos pelo Estado de forma digital e gratuita, como na Suécia, no Brasil esses serviços são realizados por cartórios privados, marcados por privilégios históricos e disparidades de custos que pesam no bolso do cidadão.
Dados revelam que pelo menos 27% dos cartórios brasileiros são administrados por pessoas que não prestaram concurso, muitas vezes acumulando remunerações altíssimas. Além disso, há pressão do setor para reajustar taxas, destinando parte delas a benefícios de funcionários públicos e fundos particulares do Judiciário e do Ministério Público.
A falta de padronização nas cobranças gera distorções gritantes entre os estados. Um levantamento comparativo mostrou que declarar uma união estável custa R$ 103 em Santa Catarina, R$ 592 em São Paulo e R$ 626 em Minas Gerais. Já um protesto de dívida de R$ 25 mil pode sair por R$ 69 no Ceará ou R$ 4.018 no Piauí – uma diferença de mais de 5.000%.
“Retificar o gênero de uma pessoa, por exemplo, é um direito. Mas, para retificar, você precisa pagar. É uma cidadania paga”, diz a tabeliã Carla Watanabe.
As diferenças de preços não refletem apenas custos operacionais, mas também a influência de lobbies. Donos de cartórios pressionam assembleias legislativas para aprovar reajustes, e parte do valor arrecadado abastece fundos do Judiciário e do Ministério Público.
“Existe lobby do Ministério Público para manter as taxas cartorárias que o abastecem. Tem lobby do Judiciário para manter taxas que vão para os fundos judiciários. Temos vários lobbies para tirar dinheiro da população”, afirma o deputado federal José Nelto (Podemos-GO), que coordenou uma comissão para reformar o sistema cartorial.
Entre as propostas estava permitir que agências bancárias realizassem parte dos serviços, mas o lobby do setor impediu a votação. “Cartórios são intocáveis”, lamenta Nelto.

Titulares de cartórios concursados não estão sujeitos ao teto do funcionalismo público. Dados da Receita Federal mostram que essa é a ocupação mais bem paga do país, com renda média mensal de R$ 156 mil. No Distrito Federal, a média chega a R$ 530 mil.
Representantes do setor divergem ao explicar as disparidades de preços. Para Alexis Cavichini, da Anoreg, estados mais ricos têm custos operacionais maiores. Já Devanir Garcia, da Arpen-Brasil, argumenta que regiões com menor demanda precisam cobrar mais para se sustentar.
No entanto, exemplos contradizem essa lógica: uma procuração que trata de bens e valores custa R$ 381 no Rio de Janeiro e apenas R$ 99 em Rondônia.
O Brasil exige registros desnecessários, como reconhecimento de firma em transferências de veículos (já registradas no Detran e na Receita) e dupla taxação em transferências de imóveis. Enquanto isso, um novo Código Civil em tramitação pode ampliar as atribuições dos cartórios, aumentando sua arrecadação.
Defensores do sistema argumentam que a “extrajudicialização” agiliza processos. “O papel do tabelião é prevenir litígios”, diz Priscila Agapito, tabeliã em São Paulo. “Somos o contrário da burocracia. O que eu vendo? Quando passei no concurso, o Estado me deu uma coisa que se chama ‘fé pública’. Significa o quê? Que tudo que eu certificar é uma verdade”.