
Há 11 anos, em 11 de agosto de 2014, o jornal Folha de S. Paulo admitia que havia cometido uma das maiores “barrigadas” da história do jornalismo brasileiro.
Em uma nota lacônica e envergonhada, a Folha corrigia uma desinformação que sustentara por dez anos. Um quadro que o jornal havia atribuído ao pintor Pablo Picasso finalmente era identificado como um pôster barato, uma mera reprodução mecânica sem qualquer valor histórico ou artístico.
Chegava ao fim a saga do “Picasso do INSS”, um dos casos mais emblemáticos da fabricação de escândalos a partir do nada, evidenciando um comportamento da imprensa que se tornaria bastante recorrente nos primeiros mandatos de Lula.
A “descoberta”
Os apreciadores de arte moderna certamente se surpreenderam com uma matéria inusitada publicada pela Folha de S. Paulo em 7 de março de 2004. Referenciada com amplo destaque na capa do jornal, a reportagem assegurava que uma obra produzida pelo mestre espanhol Pablo Picasso teria sido descoberta por acaso em uma repartição pública de Brasília.
A “descoberta” foi feita pelo historiador Francisco Azevedo, que havia sido incumbido de realizar pesquisas no acervo de obras de arte do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Francisco estava tentando localizar uma tela aparentemente perdida — o quadro “Homens numa Jangada”, pintado por Cândido Portinari em 1940. Durante a pesquisa, o historiador se deparou com o que, a princípio, lhe pareceu ser um desenho assinado por Pablo Picasso.
O artigo da Folha de S. Paulo avançava até mesmo uma hipótese para explicar como o desenho veio parar no Brasil. A obra teria sido comprada pelo pintor paraibano Tomás Santa Rosa durante uma estadia na Europa nos anos 50. Em 1957, a coleção particular de Santa Rosa foi adquirida pelo IPASE, um instituto previdenciário que foi extinto e teve seu patrimônio posteriormente incorporado ao INSS.
A “denúncia”
A Folha de S. Paulo não fez qualquer esforço para disfarçar o ar de “denúncia” imbuído na reportagem. Para ilustrar a obra na capa do jornal, os editores selecionaram uma foto com um ângulo aberto, permitindo vislumbrar o retrato oficial de Lula em uma outra parede no segundo plano. O ex-metalúrgico completara um ano e dois meses na Presidência da República.
Identificada sob a chamada “Decoração burocrata”, a matéria deixava implícita a crítica ao despreparo dos servidores públicos e ao novo governo. O texto era pontuado por expressões que evocavam amadorismo, ignorância e falta de sensibilidade no manejo do patrimônio cultural — como se quisesse frisar que a gestão era tão obtusa que havia deixado uma obra de milhões de dólares largada em uma repartição pública qualquer.
“Uma mulher desenhada por Pablo Picasso passa os dias debaixo de luzes fluorescentes e em meio à papelada de uma repartição do governo federal”, dizia o texto, que ressaltava em duas passagens o fato de que a obra, chamada de “uma preciosidade do patrimônio do INSS”, dividia a moldura com “restos de insetos”.
O malabarismo para vincular o alegado desleixo à gestão petista era evidente: “Pendurada desde o final do ano passado numa das salas da diretoria do instituto, próxima de uma fotografia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a mulher de Picasso ainda aguarda um destino melhor”, frisava outro trecho da matéria.
O jornal conseguiu até mesmo arrancar uma declaração de Amir Lando, o Ministro da Previdência Social, que reconheceu que “a sensibilidade para a arte nem sempre foi o forte na administração pública”, mas frisou que o governo não poderia “perder uma riqueza dessas”, comprometendo-se a achar um destino melhor para a “preciosidade”.
O tom da reportagem dialogava diretamente com o elitismo tradicionalmente manifestado pelos setores conservadores em relação a Lula — o presidente “sem formação”, que “não sabia falar inglês”.
Um tesouro de Pablo Picasso largado em uma repartição burocrática, sem controle de temperatura e umidade, sem vigilância, sem os cuidados de uma curadoria de arte? Que tipo de apedeuta cometeria tal barbaridade?
A repercussão
A “denúncia” da Folha teve repercussão imediata. Além de voltar a estampar a manchete principal do jornal em outras ocasiões, o “Picasso do INSS” também virou matéria de capa do Estadão e foi objeto de reportagens do Correio Braziliense, das revistas Época e IstoÉ e dos portais UOL e Terra.
A notícia ultrapassou as fronteiras nacionais. Causou espanto sobretudo na Espanha, onde um embasbacado “El Mundo” informava sobre a descoberta de uma obra de Picasso que havia sido “abandonada em um sótão no Brasil”.
Na matéria, o jornal espanhol trazia um relato entusiasmado de Marcelo Antunes da Silva, porta-voz do Ministério da Previdência Social, que assegurava que tocar na moldura da obra havia sido “uma das maiores emoções” de sua vida.
O tom das matérias variava da indignação à ironia cáustica. O cuidado em apontar o despreparo do governo Lula em lidar com a cultura era inversamente proporcional à diligência dedicada à descrição da peça, indistintamente tratada como pintura, gravura e desenho.
Nos artigos, não faltavam expressões reforçando o absurdo “descaso das autoridades” e a “inépcia do poder público”. Na reportagem da IstoÉ, alertava-se para o grave risco ao patrimônio nacional: “qualquer um pode botar um quadro desses embaixo do braço e levar embora”.
Curiosamente, não houve qualquer preocupação dos jornais e revistas em consultar um especialista. A imprensa se contentou em replicar as declarações veiculadas pela Folha como fatos autenticados, sem buscar um historiador especializado em arte moderna, um pesquisador das obras de Picasso ou um curador de museu.
O desmentido
A mídia acertou ao dizer que a obra era valiosa. De fato é. Intitulado “Mulher em Branco”, o quadro foi pintado por Pablo Picasso em 1923 e é considerado uma das obras mais célebres da chamada “fase neoclássica”. O problema é que essa pintura nunca esteve no Brasil.
A modelo do quadro é Sara Murphy, uma norte-americana expatriada em Paris que Picasso conheceu no Théâtre du Châtelet. A obra “Mulher em Branco” pertence ao acervo do Metropolitan Museum of Art de Nova York, onde se encontra localizada desde 1951.
O “Picasso do INSS” era apenas uma reprodução sem valor artístico — um pôster, uma fotografia da pintura original com tons esmaecidos, dessas que são vendidas em bancas de jornal e que costumam ser mais baratas do que a própria moldura.
Alguns leitores tentaram alertar a Folha sobre a “barrigada” — em especial o cineasta Jorge Furtado. Ele reconheceu a obra de imediato e ao compará-la com reproduções na internet e em livros de arte concluiu que se tratava de uma cópia.
Jorge escreveu cartas ao ombudsman do jornal, Marcelo Beraba, mas recebeu como resposta a afirmação de que a assinatura de Picasso era um indicativo de autenticidade da peça.
O cineasta passou dois anos trocando correspondências com a redação da Folha e com o ombudsman. O jornal, entretanto, se negava a reconhecer o erro e seguiu tratando o “Picasso do INSS” como uma obra original.
O incêndio de 2005
Em 27 de dezembro de 2005, um incêndio de grandes proporções destruiu a sede do INSS em Brasília. O fogo começou por volta das 7h, possivelmente devido a um curto-circuito no sistema de ar-condicionado do sétimo andar.
O edifício foi evacuado rapidamente e o incêndio não deixou mortos nem feridos. Não obstante, os bombeiros foram alertados que deveriam ingressar no prédio em chamas e arriscar suas vidas para salvar a “valiosa” obra de Pablo Picasso.
O incêndio que colocou em risco o “Picasso do INSS” foi a justificativa perfeita para mais uma rodada de linchamento político, com ironias e críticas exaltadas à negligência do governo Lula com o patrimônio cultural da nação.
Incomodado com o ressurgimento das reportagens tratando uma cópia como uma peça valiosa, Jorge Furtado voltou a escrever para o ombudsman da Folha, mas não obteve resposta.
O cineasta também entrou em contato com o Correio Braziliense. Para comprovar que a peça em questão não era uma obra original, Jorge chegou a realizar uma colagem sobrepondo o “Picasso do INSS” com o Picasso do Metropolitan. A sobreposição perfeita não deixava dúvidas de que se tratava de uma reprodução mecânica.
Apesar disso, os veículos da grande mídia seguiram tratando a peça como autêntica ou, na melhor das hipóteses, informando sobre a existência de dúvidas quanto à autenticidade. As poucas exceções que identificaram a obra como uma cópia desde o início foram a revista “Caros Amigos” e o site “Não”, editado por Giba Assis Brasil.
“O Mercado de Notícias”
A Folha seguiu sustentando que o “Picasso do INSS” era uma obra autêntica por dez anos. Em agosto de 2014, entretanto, a narrativa seria magistralmente demolida pelo documentário “O Mercado de Notícias”.
Dirigida por Jorge Furtado, a obra é inspirada na peça “The Staple of News”, escrita no século 17 pelo dramaturgo inglês Ben Jonson. O documentário realiza uma análise crítica sobre o papel da mídia de massa, abordando temas como a partidarização dos meios de comunicação, os abusos do jornalismo declaratório e os interesses econômicos e políticos por trás das notícias.
Poucos dias após a estreia do documentário, em 11 de agosto de 2014, mais de dez anos após a denúncia original, a Folha finalmente corrigiu sua desinformação e admitiu que o “Picasso o INSS” era apenas uma reprodução mecânica. Todos os quatro especialistas ouvidos pelo jornal e o curador do INSS descartaram por completo a autenticidade da obra.
O recurso ao jornalismo declaratório para validar ataques políticos e a criação de factoides, no entanto, seguiriam como características da grande imprensa ao longo dos governos petistas — e evoluiriam para uma agressiva campanha persecutória, visando legitimar a guerra jurídica da Operação Lava Jato a partir de 2014.
O post Fabricando um escândalo: o caso do ‘Picasso do INSS’ apareceu primeiro em Opera Mundi.