Um pão com manteiga de amendoim. Foi o que atraiu a então adolescente de 16 anos Janila Jean para perto de um soldado brasileiro da missão da ONU no Haiti, a Minustah. O estupro que se seguiu não apenas tirou sua virgindade, mas a deixou grávida. O estuprador, brasileiro, nunca mais foi visto por ali.
Relatos assim foram amplamente registrados ao longo dos últimos 20 anos. Nos seus 13 anos (2004 – 2017) de atuação, a chamada Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – Minustah, deixou um legado pouco edificante de violência, doença e abusos sexuais no país.
No aniversário de oito anos do final da missão comandada por militares brasileiros, nesta quarta-feira (15), o Brasil de Fato relembra o caso dos órfãos brasileiros abandonados no Haiti.
Não há estimativas oficiais, mas um amplo estudo de autoria de Sabine Lee (universidade britânica de Birmingham) e Susan Bartels (universidade de Ontario) publicado em 2019 pelo site The Conversation ouviu 2,5 mil haitianas que revelaram 265 casos de crianças geradas pelos capacetes azuis, o apelido das tropas “de paz” das Nações Unidas. Destes, 21, 9%, ou 53 delas, as vítimas apontaram soldados brasileiros como os pais de seus filhos.
Os casos geralmente envolvem coerção, abuso e, quando não pura violência sexual, a oferta de pequenas vantagens, como moeda ou comida – como um sanduíche de pasta de amendoim – em troca de sexo. Por vezes, as vítimas de abuso são adolescentes ou crianças. Importante ter em mente que, pelas regras das missões de paz, é proibido que militares estrangeiros tenham relações sexuais com a população civil.
Ocultamento intencional
Líder da Minustah durante esses 13 anos, o Brasil foi o país que mais soldados enviou ao Haiti, 37.449. O primeiro militar no comando da missão foi o general Augusto Heleno, condenado este ano a 21 anos de prisão por tentativa de Golpe de Estado. Os casos de abuso sexual sempre foram negados. Apenas 52 investigações chegaram ao judiciário militar brasileiro: 50 inquéritos policiais e duas prisões por flagrantes violações. Nenhum por acusações sexuais.
Desses inquéritos, 76% foram arquivados por não terem sido apuradas as responsabilidades pela má conduta e 24% referem-se a investigações que, uma vez concluídas, não afirmaram a ocorrência de crimes. Nesse contexto, quase 40 casos constituíram crimes contra a pessoa, referentes a lesões corporais, agressões ou morte, mas nenhum deles foi registrado como caso de exploração e abuso sexual.
A pesquisadora Fernanda Cavalcante de Barros, da universidade alemã de Ruhr, analisou esses números e concluiu que, ou “as tropas brasileiras de paz estavam cumprindo suas obrigações e responsabilidades e agindo de acordo com os Padrões de Conduta da ONU, ou comprovam que casos de má conduta grave não estavam sendo reportados às autoridades brasileiras e, se sim, inquéritos não estavam sendo abertos para investigar os supostos casos de má conduta”.
Ao se debruçar sobre a grande quantidade de evidências registradas, a pesquisadora afirma ser visível “que o governo brasileiro vem ocultando informações sobre os abusos sexuais cometidos por suas tropas para manter uma ‘boa imagem’ no cenário internacional”.
‘Para inglês ver’
“O que surpreende não são os abusos, que são frequentes sempre que soldados da ONU são enviados a algum país, já que eles têm imunidade e não são fiscalizados. A surpresa é que nada aconteceu após as denúncias”, diz Ricardo Seitenfus, professor de Relações Internacionais e autor de A ONU e a epidemia de cólera no Haiti.
“Todos sabiam o que estava acontecendo, a ONU, o Exército brasileiro, que como líder da missão era responsável por investigar denúncias de abusos cometidos por militares de outros países”, disse ao Brasil de Fato.
Entre esses casos mantidos debaixo dos panos, há o dos 134 soldados do Sri Lanka – um dos 13 países que mandaram capacetes azuis – que teriam abusado sexualmente de nove meninas haitianas entre 2004 e 2007. O caso veio à tona apenas após denúncia da Associated Press em 2017, e apesar de o governo do Sri Lanka repatriar 114 dos acusados e prometer apurar o caso, nenhum foi processado.
Pior: em 2011 circulou vídeo do suposto estupro cometido por seis militares uruguaios. A vítima, um adolescente de 18 anos chegou ir ao Uruguai a testemunhar no caso. Mas, no ano seguinte, a Justiça uruguaia decidiu não processar os militares, que filmaram o ocorrido e divulgaram na internet.
“Essas denúncias todas, a grande quantidade de escândalos, levou a ONU a criar uma inédita ouvidoria. Mas como as vítimas eram quase todas muito pobres e precisavam de advogados para provar suas denúncias, não deu em nada. Foi para ‘inglês ver’”, conclui Seitenfus.
O Haiti é celeiro de denúncias de crimes não investigados, cometidos por estrangeiros contra a população local. Outro exemplo é o acima mencionado general Heleno, responsável – embora não responsabilizado – pelo massacre de Cidade de Soleil em julho de 2005. A missão era assassinar um criminoso, mas levantamento da Reuters aponta que foram mortos mais de 70 pessoas, muitaas mulheres e crianças.
Assistência dos movimentos populares
Outro obstáculo para uma responsabilização é o próprio sistema que joga contra. A criminalização do estupro ocorreu apenas em 2005 e, mesmo assim, sem uma definição escrita, deixando a cargo do juiz ou promotor decidir se houve ou não crime. Além disso, uma acusação só é aceita se um médico emitir atestado comprovando. Somando ao combo o medo de retaliação, o costume de culpar a vítima e a diferença abismal de status entre vítima e criminoso, é seguro concluir que os casos são extremamente sub-dimensionados. E encontram resistência da própria ONU.
Em 2018, por exemplo, o escritório de advocacia Bureau des Avocats Internationaux (BAI) entrou com ações de paternidade no Haiti em nome de dez crianças supostamente filhas de soldados da missão de paz da ONU. Mas o BAI alega que a ONU não cooperou para resolver a situação, retendo informações cruciais e dificultando o avanço dos casos nos tribunais haitianos. Uma advogada do Instituto para Justiça e Democracia no Haiti, parceiro do BAI, afirma que a ONU reteve informações importantes e que as mulheres haitianas, geralmente pobres, tiveram que arcar com a maior parte do trabalho, aprofundando sua vulnerabilidade.
Uma das entidades que atuou junto com o BAI foi a Moleghaf, ou Aliança Negra para a Liberdade, movimento popular que luta contra abusos cometidos pelas ocupações estrangeiras no país. Um de seus integrantes, David Oxygène, mora há três anos no Brasil.
À reportagem, Oxygène diz que a entidade na capital haitiana, Porto Príncipe, presta assistência a cerca de 40 a 50 mães solo, abandonadas com filhos por militares da Minustah, a maioria, brasileiros.
“Soldados do Brasil deixaram filhos no Haiti, uma vergonha. A lei, seja no Haiti ou no Brasil, não permite isso. Transar à força ou em troca de qualquer coisinha. Como são pessoas muito pobres, que não têm o que comer, elas são vulneráveis a esses soldados”, disse ele.
“Tentamos denunciar, conscientizar, fazer palestras, falar com autoridades, mas serve de pouca coisa. Elas estão lá sozinhas, sem ajuda dos pais de seus filhos.”
Perguntado se a missão brasileira trouxe algo de bom ao seu país durante esses 13 anos, Oxigéne afirma que “uma força de ocupação não tem nada positivo, ela serve para oprimir, impedir que o povo se organize, decida seu presente e futuro”.
“A Minustah impôs ao povo o governo de extrema direita de Michel Martelly (2011 – 2016), o Bolsonaro haitiano. Os soldados do general Heleno massacravam muitos haitianos nas favelas, mas não apenas pobres. Militantes também.”
“Há o caso das crianças filhas de brasileiros, abandonadas e na miséria. E ainda por cima teve a cólera, levada por soldados [nepaleses] da Minustah, que é um problema até hoje.”
“Tropas de ocupação servem para deixar o Haiti de joelhos, subjulgado” , conclui.
*Colaborou Cha Dafol, do Haiti
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